O SURGIMENTO DE UMA IDENTIDADE NACIONAL A PARTIR DO INÍCIO DE UM MOVIMENTO COREOGRÁFICO NO BRASIL
Desde minha mais tenra idade, música e dança são essenciais na minha vida.
Cresci ouvindo música. Minha mãe tocava piano e violão e possuía uma linda voz. Durante minha gestação, frequentemente tocava violão e cantava. Meu pai amava música, era um pé de valsa e adorava dançar.
Sempre fui muito agitada, gostava de conversar, estar no meio de pessoas, dançar e cantar. Minhas brincadeiras preferidas, quando criança, eram dar aulas e colocar meus amiguinhos e priminhos para encenar peças de teatro e coreografias que eu criava.
Comecei a estudar ballet e música aos cinco anos de idade. Afirmava que seria bailarina e dançaria em muitos palcos. Diziam-me que eu tinha um grande talento para ser pianista, mas como me fazer ficar sentada, quieta e, além do mais, sozinha, em frente ao piano, estudando por horas a fio? Eu nunca consegui tal façanha e acabei abandonando os estudos de piano aos 14 anos de idade.
Concentrei-me no estudo do ballet clássico. Meu pai tentou conseguir, sem sucesso, uma bolsa de estudos para que eu pudesse me aprimorar nos Estados Unidos, na década de 80.
Quando eu tinha 16 anos de idade, a grande mestra de ballet Tatiana Leskova me ofereceu uma bolsa de estudos para que eu fosse estudar em sua escola, no Rio de Janeiro. Mas eu não tive a coragem necessária para me afastar do ninho. E permaneci em Belo Horizonte, cidade onde nasci.
Atuei profissionalmente como bailarina clássica até os 30 anos de idade e fui premiada em concursos nacionais. E, após afastar-me dos palcos, continuei a trabalhar profissionalmente como professora de técnica de ballet clássico.
Em julho de 1991, prestes a completar 28 anos de idade, uma amiga me convidou a conhecer um grupo de pessoas de Florianópolis que estava hospedado em sua casa para participar de um Congresso Holístico Internacional, realizado pela Unipaz, em Belo Horizonte. Fui convidada a acompanhá-los na cerimônia de encerramento desse congresso.
Foi em uma noite fria, 19 de julho de 1991, no Parque Municipal das Mangabeiras, em Belo Horizonte onde, pela primeira vez, participei de uma roda de Dança Circular.
A dança aconteceu em um teatro de arena, ao ar livre. Disseram que se tratava de uma dança chamada Dança Sagrada. Um coletivo de pessoas, como um grande corpo de baile, dançando passos simples, em uníssono, de mãos dadas.
Nenhuma das pessoas que havia me convidado para aquela cerimônia de encerramento atendeu ao convite, feito a todos os presentes, para participar da dança. Sem hesitar, uni-me ao grupo de pessoas que formava aquele círculo.
Fiquei encantada! Lembro-me até hoje da cor dos meus sapatos: azuis.
Tive a certeza, naquele momento, de que aquilo faria parte da minha vida, de que eu iria trabalhar profissionalmente com aquela, assim chamada, dança sagrada. Uma modalidade de dança onde não havia a dicotomia dançarino/plateia, onde todos eram participantes de uma mesma experiência dançante.
Após essa primeira vivência não encontrei mais nada a respeito daquele tipo de dança.
Ouvi dizer que havia, em Belo Horizonte, um professor chamado William Valle, mas eu não o conhecia e não sabia como encontrá-lo. Vivíamos em um mundo sem Google e sem redes sociais!
Em julho de 1994, passados três anos, vi um pequeno cartaz que convidava para um workshop de Danças Sagradas com Carlos Solano.
Viva! Achei!
Éramos seis participantes. Foi a primeira vez que ouvi falar da Comunidade de Findhorn. Recebemos uma pequena apostila com informações sobre as danças e uma fita cassete. Não havia gravação das danças em vídeo. Aprendi 12 danças. Lembro-me que havia algumas danças da coletânea que, posteriormente, conheci através da publicação da Editora TRIOM, O Espírito da Dança.
E com aquele repertório de apenas 12 danças comecei a conduzir vivências de Danças Sagradas, a partir do segundo semestre de 1994.
Minhas primeiras experiências ensinando as danças aconteceram com meus alunos de ballet.
Às sextas feiras eu oferecia, gratuitamente, uma sessão de Dança Circular no palco da sede do Grupo Corpo e em uma sala de aula no Centro Mineiro de Danças Clássicas.
Os alunos eram todos adolescentes. Eles saíam emocionados daquelas aulas.
No ambiente do ballet, meus colegas achavam que eu andava meio ‘esquisita’. Era uma proposta muito inusitada de atividade dançante, naquela época, para uma escola de ballet. O nome sagrada aumentava ainda mais a estranheza àquela proposta.
Em março de 1995, aluguei uma sala e formei o meu primeiro grupo regular com cobrança de mensalidade. No início, eram apenas 3 ou 4 pessoas. Desde essa época nunca mais deixei de conduzir uma roda semanal.
Ainda naquele ano de 1995, Lúcia Ferreira, colega de trabalho na escola do Grupo Corpo e Gerente do Departamento de Extensão no Teatro Palácio das Artes, veio me consultar sobre um grupo de pessoas que estava pedindo a cessão de uma sala para um evento de Danças Sagradas. O evento se chamava Festival de Danças Primeiras e estava sendo produzido pelo Grupo Mineiro de Danças Sagradas, sob a coordenação de Carlos Solano, Maria Inêz Soares, Déa Dilma Mendonça Lins e Jane Alphonsus Rodrigues. Minha colega queria saber minha opinião sobre este tipo de dança, pois o nome, sagradas, assustava um pouco e ela sabia que eu estava envolvida com este tipo de dança. Acredito que meu ‘aval’ contribuiu para que a sala fosse cedida para o evento.
Ela ganhou uma bolsa para participar, não pôde comparecer e, na última hora, a passou para mim!
Nesse Festival de Danças Primeiras, em julho de 1995, conheci Anna Barton, que estava vindo ao Brasil pela primeira vez, a convite de Carlos Solano, Renata Ramos e Sirlene Barreto. Conheci também Sabira (Christina Dora), Marianne Inselmini, Kaká Werá e Tião do Maranhão.
Ainda hoje me recordo da profunda alegria que senti em participar desse evento, que durou uma semana. E da sensação maravilhosa de estar na roda, dançando de mãos dadas com outras pessoas.
Conheci, naquele festival, vários dançantes de Belo Horizonte, entre eles Myrian Moura, que se tornou minha amiga e passou a ter aulas particulares de inglês comigo. Através dela, comecei a tomar conhecimento dos poucos eventos de Dança Sagrada que aconteciam no Brasil, naquela época.
Fiquei então sabendo, por intermédio da Myrian, de uma viagem que estava sendo organizada para a celebração dos 20 anos da Dança Sagrada na Comunidade de Findhorn, na Escócia, em julho de 1996. Era um grupo seleto de participantes e a organização era de Carlos Solano e Renata Ramos. Eu disse a ela: Pode dizer ao Carlos Solano que eu quero fazer parte desse grupo. Eu vou de qualquer jeito!
Percebi uma grande sincronicidade ao tomar conhecimento daquela viagem. Para mim, era a confirmação de que eu estava sendo guiada para trilhar um caminho destinado a mim nesta vida.
Conhecer a Comunidade de Findhorn e participar do Festival de Dança Sagrada foi uma experiência transformadora. Uma visão de vida espiritual não necessariamente ligada a um credo religioso, mas atrelada à beleza e singeleza da vida cotidiana, ao convívio fraterno entre os seres humanos, ao respeito a todas as formas de vida e crenças, e à forte presença da Arte no caminho espiritual.
Havia, em Belo Horizonte, a Companhia Roda Dança, que fora fundada por Carlos Solano juntamente com Maria Inêz Soares, Juliane Campolina Moreira e Ana Maria Cassimiro. Eu passei a integrar este grupo em 1998. Foram vários os professores convidados a dar cursos em Belo Horizonte: Peter Vallance, Maria Gabriele Wosien, Ray Price, Laura Shannon, Barbara Swetina, Sabira, Marianne Inselmini, Joyce Dijkstra, Tião do Maranhão, Paulo Murakata e Mandy de Winter, que foi a última convidada, em 2003, quando a Companhia Roda Dança encerrou as suas atividades.
Eu sempre atuava como tradutora, do inglês para o português, nos cursos produzidos pela Companhia Roda Dança. Era também, ocasionalmente, convidada a atuar como tradutora em cursos de Dança Circular Sagrada com professores internacionais, em outras cidades.
Eu trabalhava como professora particular de inglês e como professora de ballet clássico na escola do Grupo Corpo e em várias outras escolas de Belo Horizonte.
E, neste momento de minha trajetória dentro da Dança Circular Sagrada, surge Maria Cândida Braz – a Candinha – que trabalhava como secretária no Grupo Corpo. No final da década de 90 ela passou a frequentar minhas aulas semanais de dança. Amante da música e possuidora de uma ampla e variada biblioteca de CDs, começou a me ofertar músicas maravilhosas para eu coreografar.
Comecei a coreografar danças, inicialmente, para presentear meus alunos no dia de seus aniversários. Muitas vezes, eles mesmos sugeriam a música.
Em 1999, levei um grupo de dez alunos para participar do Festival de Dança Sagrada na Comunidade de Findhorn.
Naquela ocasião, compartilhei, em nosso small group de brasileiros, uma coreografia para a música Ciranda, de Gilberto Gil, a qual eu dera o nome de Ciranda das Flores. Pouco tempo depois, alguém me disse que Renata Ramos havia ensinado esta dança em um workshop no Brasil, o que me deixou muito feliz!
Em um workshop com Marianne Inselmini da Suíça, em abril de 2001, no Retiro das Rosas, em Belo Horizonte, com a participação de 50 dançantes de vários Estados, tive a oportunidade de mostrar para o grupo, a pedido de Marianne, a minha coreografia para Esperando na Janela, um delicioso forró de Gilberto Gil.
A partir daí surgiram os primeiros convites para que eu ensinasse minhas coreografias em outras cidades.
Meu primeiro workshop aconteceu no Rio de Janeiro, em julho de 2002, a convite de Glória Maria de Oliveira. Ensinei dez danças, todas de minha autoria, para um grupo de dez pessoas. Fui de ônibus levando em minha bolsa o material do curso – um livreto com as coreografias anotadas e uma fita cassete com as músicas.
Logo em seguida, Cibele Santos me convidou para um curso em Curitiba e foi uma das primeiras incentivadoras e apoiadoras de meu trabalho de criação. Mantivemos uma parceria por mais de cinco anos e sou muito grata a ela por esse apoio.
Eu oferecia oficinas de dança com um repertório inteiramente autoral, o que era algo inédito no Brasil naquela época.
Por volta do ano 2000 havia poucas danças com músicas brasileiras dentro do repertório da Dança Circular. Nós dançávamos basicamente danças tradicionais europeias, as danças de Findhorn, danças dos florais de Bach e de Anastasia Geng, danças de nossos povos indígenas, cirandas, algumas danças inspiradas no folclore brasileiro, danças coreografadas por professores europeus e danças Israeli. Dançávamos também danças do repertório das Danças da Paz Universal.
Naquela época, eu chamei minhas coreografias de Danças Circulares Brasileiras, o que gerou desconforto para algumas pessoas, pois eu nunca fora estudiosa de folclore. E minhas coreografias não eram nem folclóricas nem tradicionais. Minha proposta era oferecer um repertório de Danças Circulares coreografadas no Brasil, por uma artista brasileira, com músicas brasileiras e com os códigos populares de movimento do povo brasileiro.
Fui pioneira na introdução, nas rodas de Dança Circular, da música popular brasileira, da bossa-nova, da música de diversos compositores regionais, do forró, baião, choro e samba.
Em novembro de 2003, eu fazia a tradução de um workshop com Ray Price, quando Sonia Lima me perguntou se eu não teria interesse em ensinar minhas danças em um workshop em São Paulo. Laura Abe a havia incentivado a convidar-me, pois conhecera a minha coreografia Ciranda das Flores.
O primeiro workshop aconteceu em outubro de 2004, na cidade de Itu. Foram vários anos de parceria com Sonia Lima na organização de meus cursos, a quem sou profundamente grata.
A partir dessa época, meu trabalho de criação começou realmente a se expandir e ser reconhecido nacionalmente e minhas coreografias passaram a ser dançadas em quase todas as rodas do Brasil.
A introdução de danças coreografadas para músicas brasileiras, cantadas em português e com uma movimentação genuinamente brasileira gerou um profundo sentimento de reconhecimento, identificação, alegria e pertencimento nos dançantes brasileiros.
Ocorreu uma enorme e poderosa sintonia entre nossa música, em toda sua rica e bela diversidade melódica e rítmica, as sequências de passos propostas por mim nas coreografias e os dançantes, gerando um forte sentimento de brasilidade e identidade, que foi de grande importância para a subsequente expansão da Dança Circular no Brasil.
Meu pioneiro trabalho de criação foi inspirador e catalisador para o surgimento de diversos e talentosos coreógrafos de Dança Circular em todo o território brasileiro, e a música popular brasileira foi gradativamente ampliando sua presença em todos os eventos de Dança Circular no Brasil.
Um outro grande impulso para a expansão do movimento coreográfico no Brasil foi o curso Teoria e Prática no Ensino das Danças Circulares, que passei a oferecer a partir de 2007. Neste curso, analiso com os alunos a estrutura coreográfica das Danças Circulares bem como o processo de compreensão musical necessário para o ato de coreografar, dentro do escopo das características da Dança Circular.
A partir de 2016 passei também a oferecer um curso de educação musical para dançantes circulares, fornecendo um conhecimento mais aprofundado para aqueles que desejavam criar suas próprias coreografias de Dança Circular.
Guataçara Monteiro, em seu livro Trilhas de um Sonhador, na página 204, relata: Fiz a formação de focalizadores com a Renata Ramos em São Paulo e conhecemos a focalizadora e coreógrafa Cristiana Menezes; aprendemos com ela como de fato se constroem as coreografias. Veio daí a referência que precisávamos e a orientação para a escolha das músicas, construção das coreografias e preparo dos materiais didáticos.
Aos poucos, as coreografias brasileiras de Dança Circular passaram a ser dançadas em outros países e na Comunidade de Findhorn, na Escócia.
A expansão do movimento coreográfico no Brasil foi também inspiradora para outros países da América Latina, que também passaram a criar coreografias com sua música e identidade cultural. Penso que podemos dizer que a Dança Circular possui, atualmente, não somente uma identidade brasileira, mas uma identidade latino-americana.
A presença da Dança Circular continua sendo transformadora em minha vida, fonte de alegria, aprendizado contínuo e crescimento interior, além de ter me conduzido aos melhores amigos que tenho atualmente.
Ao fazer esta retrospectiva percebo que houve uma harmoniosa conspiração de eventos e circunstâncias para que a Dança Circular se tornasse tão importante e protagonista em minha vida, tanto pessoalmente quanto profissionalmente.
E sinto-me especialmente feliz e honrada por ter sido capaz de contribuir, de forma profunda e significativa, para seu desenvolvimento e expansão no Brasil.